VOZES LOBATIANAS EM DIÁLOGO

possibilidades e desafios de estudar Monteiro Lobatos

Autores

  • José Wellington de Souza Universidade de Taubaté (UNITAU), Brasil
  • Rachel Duarte Abdala Universidade de Taubaté (UNITAU), Brasil https://orcid.org/0000-0002-6936-5329
  • Vanete Santana-Dezmann Volkshochschule-Neuss, Alemanha
  • John Milton Universidade de São Paulo (USP), Brasil

DOI:

https://doi.org/10.32813/2179-1120.2022.v15.n2.a907

Palavras-chave:

Monteiro Lobato

Resumo

“Preto também é gente!” – as “calamidades” pretendidas por Monteiro Lobato
José Bento Monteiro Lobato, escritor, editor e empreendedor, nasceu em Taubaté, no interior de São Paulo, em 1882, e faleceu na capital do estado em 1948. Sua obra – de ficção e não-ficção – é marcada por uma preocupação indelével com os problemas nacionais, que demonstrava reconhecer e denunciava desde suas primeiras linhas publicadas e os quais tentou sanar ao longo de sua vida adulta. Tais problemas referiam-se, desde à falta de políticas públicas relacionadas à saúde e ao saneamento básico, até deficiências no âmbito da educação e cultura, passando pela desigualdade social e pelo subdesenvolvimento.
Na área da saúde e saneamento, Lobato uniu-se ao Instituto de Manguinhos – atualmente denominado Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) – para defesa de políticas de prevenção a doenças. No âmbito industrial, defendeu a exploração de petróleo e minerais e chegou a investir nessa área, perdendo muito dinheiro e conquistando a antipatia de Getúlio Vargas. No entanto, Lobato nunca se calou diante do que considerava injusto ou incorreto. A irreverência, o sarcasmo e a ironia – principais características de sua personalidade, que se refletem diretamente em sua obra – o levariam à prisão. Mesmo preso, não se curvou diante da truculência do ditador Vargas, enviando-lhe da cela uma carta que agravou ainda mais sua situação, o que resultou no prolongamento de sua pena. Trabalhador incansável, aproveitou o cárcere para traduzir dezenas de livros, assegurando, assim, o sustento de seu lar. Sua preocupação com o próximo o levou a alfabetizar os colegas presidiários e a auxiliá-los a conseguir emprego depois de libertos – inclusive, contratou um deles como jardineiro em sua casa.
Ainda no âmbito dos empreendimentos industriais e comerciais, Lobato investiu na criação do mercado editorial brasileiro, sendo responsável pela abertura da primeira editora nacional, incremento da produção e circulação de livros, bem como oferta de vários postos de trabalho para diversos tipos de profissionais, dentre os quais o de escritor e o de ilustrador, tornando-se responsável pela profissionalização do trabalhador intelectual no Brasil. Assim, ao mesmo tempo incrementou o público leitor. E foi nessa área que Lobato mais contribuiu, fosse como escritor, tradutor, crítico, fosse como editor e empreendedor. Ao escolher o que seria publicado e traduzido, decidia o que seria lido, quais autores seriam conhecidos e quais ideias seriam difundidas, influenciando, assim, a mentalidade de sua época – ou, ao menos, abrindo caminho para a circulação de novas ideias, diversas das que povoavam a mente da classe dominante.
Valendo-se de sua posição de escritor e editor, Lobato cria, por exemplo, um novo mundo em que a democracia e a liberdade, inclusive a liberdade de expressão, não tinham restrições: o Sítio do Picapau Amarelo, uma república comandada por uma mulher idosa com o auxílio de outra mulher, analfabeta e negra. E se nessa república a boneca de pano que ganhou vida tinha liberdade para ser rebelde – como todo pré-adolescente um dia passa a ser –, também a senhora negra, pobre e sem instrução formal, tinha liberdade para repreendê-la, para viajar à Europa com a finalidade de aconselhar os principais estadistas da época sobre como bem-governar e para afirmar, pela primeira vez na história da literatura brasileira, que “preto também é gente”.
Não é de se surpreender, portanto, que seus livros tenham sido considerados subversivos pelos detentores do poder, proibidos em algumas épocas e alimentado diversas fogueiras. Seu apelo para que se enxergasse o modo desumano com que as pessoas descendentes dos escravizados eram tratadas na sociedade brasileira no início do século XX, destinado diretamente ao coração dos leitores – pessoas pertencentes a estratos mais elevados da sociedade –, torna o conto “Negrinha” um ícone da literatura brasileira, posto a serviço da denúncia das injustiças sociais. O menos conhecido atualmente – mas não menos contundente – conto “Os negros” é outro exemplo dessa literatura. Graças ao teor desse conto, e de certas declarações suas, Lobato foi acusado de “espírita”, em uma época em que o termo espírita era xingamento. Aliás, se se quer acusar alguém injustamente, Lobato é o homem perfeito! Basta tomar a sério seus sarcasmos e ironias, ou deslocar frases e parágrafos de seus textos e do contexto e se tem uma lista de “defeitos”: além de espírita, Lobato já foi acusado de materialista, capitalista, comunista, progressista, retrógrado, reacionário, subversivo, visionário, descumpridor das leis do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais (IBAMA), que só seria fundado em 1989, e, por fim, racista. Esta penúltima acusação levou seu Caçadas de Pedrinho, livro publicado em 1933, ao banco dos réus em um longo processo que chegou ao Supremo Tribunal Federal, consumindo muitos reais do contribuinte, até o veredito final, proferido em dezembro de 2020. Graças à última acusação – que, ao que tudo indica, será substituída por outras tão logo se torne oportuno –, muitas matérias foram produzidas e críticas tecidas, até mesmo por quem afirma nunca ter lido seus livros. Mas por que Lobato incomoda tanta gente? Por causa da posição de destaque em que coloca duas mulheres em um mundo em que as mulheres de carne e osso sequer podiam votar? Por causa da importância que atribui às crianças – nas páginas de seus livros e fora delas –, ouvindo-as e respeitando sua natureza inquiridora? Por causa do reconhecimento de que somos todos iguais – apenas “vibração de éter”, conforme explica na voz do sábio Prof. Benson, em O choque das raças ou o presidente negro? Por causa da insistência na necessidade de se explorar o petróleo e os recursos minerais de nosso país, iniciando-se a industrialização, em uma época em que o Brasil importava de ideias a panelas? Por causa de sua crítica à exposição de Anitta Malfatti publicada em 20 de dezembro de 1917, quando ele era apenas um crítico de arte – considerado o melhor do país – do jornal O Estado de São Paulo? Neste caso, faz-se necessário retomar algumas informações talvez propositalmente esquecidas: a exposição, intitulada “Exposição de Pintura Moderna Anitta Malfatti”, contava com 53 obras da própria artista e outras de colegas seus norte-americanos, dentre os quais, Abraham S. Bolynson. Em seu “A propósito da Exposição Malfatti”, incluído posteriormente no livro Ideias de Jeca Tatu com o título “Paranoia ou Mistificação”, ao afirmar que havia dois tipos de arte, Lobato estabelece dois tipos de artistas: “[...] os que veem normalmente as coisas e em consequência fazem arte pura” e “[...] os que veem anormalmente a natureza e a interpretam à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de escolas rebeldes surgidas cá e lá como furúnculos de cultura excessiva.”. Na mesma crítica, sobre o trabalho do cubista Bolynson, afirma: “Está ali entre os trabalhos da sra. Malfatti em atitude de quem prega: eu sou o ideal, sou a obra-prima” e, a Anita Malfatti atribui “talento vigoroso e fora do comum”, justificando sua avaliação: “Percebe-se, de qualquer daqueles quadrinhos, como a sua autora é independente, como é original, como é inventiva, em que alto grau possui umas tantas qualidades inatas, das mais fecundas na construção duma sólida individualidade artística”. Então, na opinião de Lobato, a qual categoria pertenceria Anitta – à dos adeptos do “futurismo, cubismo, impressionismo, e tutti quanti”, que ele tanto desprezava, ou à primeira? Sobre quem, de fato, recai sua cáustica crítica – sobre Anitta ou sobre Bolynson e companhia? Sobre as obras de Anitta ou sobre a porta que ela abriu para que obras genuinamente estrangeiras “contaminassem” a arte brasileira? Não é sem motivo que, na mesma crítica, Lobato pergunta “Quando nos virá a esplêndida coragem de sermos nós mesmos, como o francês tem a coragem de ser francês e o inglês de ser inglês, e o alemão de ser alemão?”. O fato de que “O Homem Amarelo”, quadro de Anita Mafaltti que fez parte da exposição, ilustrou a capa da primeira edição de Ideias de Jeca Tatu¨ talvez ajude a sanar eventuais titubeios de quem se proponha a responder a essa série de perguntas.
A lista das “calamidades” propagadas e protagonizadas por Lobato é extensa; quase tão extensa quando a lista de amigos e admiradores e, mais recentemente, detratores. Mas tudo isso é compreensível e de se esperar, pois uma personalidade como a de Lobato e a obra e os feitos que ele nos legou dificilmente deixariam de provocar reações. É por isso que até hoje, mais de meio século após sua morte, seu rosto e nome ainda figuram nas capas e nas páginas dos mais diversificados jornais, revistas, sites e blogs do país e do exterior, na esfera acadêmica e fora dela. É natural, portanto, que a Universidade de Taubaté, localizada na cidade que lhe serviu de berço, publique este dossiê que temos a honra de apresentar e de cuja organização participamos, juntamente com a Profa. Dra. Rachel Duarte Abdala e o Prof. Dr. José Wellington de Souza. Dentre os artigos criteriosamente selecionados, encontram-se temas diversificados sobre o autor e sua obra que certamente enriquecerão os conhecimentos do leitor e lhe fornecerão elementos para novas elucubrações.
A pluralidade das vozes que permeiam o discurso e as ações do notório e polêmico escritor brasileiro Monteiro Lobato apresentam desafios, e também múltiplas possibilidades de estudos acadêmicos. A partir dessa premissa, este dossiê apresenta um conjunto de textos, pesquisas e pesquisadores que trabalham os múltiplos aspectos e temáticas das obras e ações de Monteiro Lobato, em perspectivas contemporâneas, de caráter interdisciplinar, teórico e empírico. Os textos que compõem o dossiê assumem um olhar interdisciplinar que abrange aspectos teóricos e metodológicos sobre a obra de Lobato a partir de articulações de áreas e de aproximações entre questões que as perpassam. Esse olhar revela as nuances muitas vezes inexploradas e mesmo não percebidas da obra do escritor, e também sobre suas potencialidades de embasar observações e estudos sobre o mundo contemporâneo. 
É com prazer, portanto, que convidamos quem se interessa por nossa cultura e história a experimentar o sabor de novos saberes aqui no dossiê “Monteiro Lobato” da Revista Ciências Humanas da UNITAU, que tem como tema “Vozes lobatianas em diálogo: possibilidades e desafios de estudar Monteiro Lobato”. Aproveitamos o ensejo para agradecer à Universidade de Taubaté por esta importante iniciativa e pela oportunidade de integrá-la.

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Publicado

2022-07-05

Como Citar

Souza, J. W. de, Abdala, R. D., Santana-Dezmann, V., & Milton, J. (2022). VOZES LOBATIANAS EM DIÁLOGO: possibilidades e desafios de estudar Monteiro Lobatos. Revista Ciências Humanas, 15(2). https://doi.org/10.32813/2179-1120.2022.v15.n2.a907